
“Falta muito para que a inocência tenha tanta proteção como o crime” (François La Rochefoucauld)
A implementação dos Programas de Integridade, conhecidos como compliance anticorrupção, tem contribuído muito para um mundo melhor e mais justo em termos de competição de mercado, mas não o suficiente. A simples criação do instituto programa de integridade mostra que a previsão penal para crimes como corrupção passiva, corrupção ativa, fraude, lavagem de dinheiro, carterização e outros ilícitos relacionados, simplesmente não possui a efetividade esperada.
Como costumo dizer, “se leis fossem suficientes não haveria crimes”. Mas eles existem, persistem, multiplicam e se perpetuam como modelo de negócio e de gestão, a despeito da propaganda veiculada de maneira insistente pelos que defendem os programas de integridade.
De nada serve se agarrar de maneira ferrenha à inocência do estabelecimento de novas leis ou endurecimento das penas, ou pior, a purismo da crença nas instituições que deveriam executar, fiscalizar e punir aqueles que maculam a integridade das relações de mercado, especialmente quando se trata da relação com o poder público. Absolutamente nada disto está funcionando, e os números falam por si:
No ranking 2024 do Índice de Percepção da Corrupção – CPI (Corruption Perception Index) da Transparência Internacional, o Brasil marcou 34 pontos e ficou na 107ª posição entre 180 países, ficando atrás de países como Ucrânia, Zâmbia, Cuba e Colômbia (a média para as Américas é 42 pontos e para o mundo é 43 pontos);
O ranking 2023 de Capacidade de Combate a Corrupção – CCC (Corruption Combat Capacity) da AS/COA/Control Risk traz o Brasil com uma nota média de 4,86 em 10 e que vem piorando sistematicamente desde 2020;
O ranking 2024 do Índice de Estado de Direito (Rule of Law Index) do World Justice Project – WJP traz o Brasil na 77ª colocação em 142 países no quesito Ausência de Corrupção e na colocação 113º quanto se trata de Justiça Criminal;
Já o Ranking de Competitividade Global (World Competitiveness Center) de 2024, do International Institute for Management Development – IMD, termina por consolidar o resultado desastroso dos indicadores acima entre outros, trazendo o país na 62º posição entre os 67 pesquisados (piorando desde 2020 quando ocupava a 56ª posição), atrás de países como Indonésia (27º), Índia (39º) e Botswana (35º).
A verdade mais dura é que os empresários estão abandonados à própria sorte na batalha pela sobrevivência no mercado, inseridos num ecossistema muito mais complexo que a maioria dos indivíduos e entes querem reconhecer, seja por conveniência, desinteresse, desconhecimento, ou puro conflito de interesse. É mais fácil fingir que nada está acontecendo, pois “não é problema meu”, mas das autoridades.
A redução da corrupção é fundamental, não por puro princípio de moralidade, inalcançável ou incompreensível em seu aspecto intangível, mas principalmente em termos microeconômicos com seu reflexo inexorável na macroeconomia. Veja o exemplo a seguir:
Uma vez fui procurado por um empresário que manifestou sua insatisfação, dizendo que foi prejudicado pela implementação de um programa de integridade em um importante cliente que esteja com ele há cerca de dez anos, e que havia comunicado seus fornecedores, incluindo ele, que todos os contratos com mais de três anos deveriam ser relicitados. Ele confidenciou que estava com medo de perder o cliente, o que poderia representar séria dificuldade econômica, e que se sentia injustiçado, pois segundo ele, enquanto tanto “picareta” existia no mercado, ele nunca havia pago um único suborno ou outro tipo de facilidade para manter seu contrato, que era aditado ano após ano com base na qualidade dos serviços prestados e preço justo. Então perguntei quantos clientes de grande porte ele havia procurado e que sequer haviam lhe dado a oportunidade de apresentar uma cotação, e ele me respondeu que dezenas. Então retruquei, e perguntei qual a razão dele não conseguir um espaço junto aos clientes e se ele acreditava que todos os seus concorrentes mantinham seus contratos da mesma maneira honesta que ele, e ele ficou apenas me olhando atônito. Por fim, eu pedi para que ele imaginasse a seguinte situação hipotética: que todos os grandes clientes potenciais implementassem programas de integridade e passagem a realizar licitações mais transparentes e periódicas. O resultado seriam mais oportunidades e menos “picaretas” no mercado, pois só é possível um serviço ruim com preço elevado onde há corrupção. A implementação em massa de programas de integridade contribuiria para o aumento da competitividade e das oportunidades, aproximando da hipótese de concorrência pura.
Se de fato houver alguma vontade de se reverter o quadro de corrupção no país, o primeiro passo é não “tapar o sol com a peneira”. É preciso lucidez e pragmatismo, compreendendo como os mecanismos se desenrolam e as fragilidades que permitem a continuidade de práticas ilícitas.
Permaneço na defesa da tese de que, enquanto não houver instrumentos difusos, técnicos e eficazes que projetam as empresas e o mercado, empresas sem compliance continuarão mais competitivas, especialmente quando operam em ambientes notadamente mais marcados por corrupção histórica, pois os contratantes, seja do poder público ou privado, sempre terão farta oferta de empresas dispostas a participar de processos fraudulentos, em detrimento daquelas “amarradas” por suas práticas de compliance.
Mas vale destacar que os empresários honestos estão fragilizados (e sim, a maioria são guerreiros, heróis, e não criminosos vocacionais à espreita de oportunidades ilícitas), expostos e completamente desamparados na luta contra a corrupção externa, especialmente quando advinda do poder público (mais arraigada e evidente na medida em que se envereda pelos níveis subnacionais). Não me refiro à conivência com a corrupção, mas à fragilidade frente seus efeitos.
E antes que muitos entusiastas puristas do compliance “rasguem as vestes, rolem no chão e arranquem os cabelos” em protesto aos impropérios que digo, estes precisam entender que é fundamental transcender os “muros” da empresa e atuar de forma institucional, para mudar a realidade regulatória, cultural e de mercado que nos cerca, através de entidades setoriais, associações empresariais e da sociedade civil, para modificar o cenário regulatório, de gestão e de controle, e principalmente, modificar o próprio poder público. Do contrário, é “enxugar gelo”.
Exemplo de ação concreta é o Projeto de Lei No 1.588/2020, onde tive a oportunidade de contribuir no texto através da Associação Brasileira de Avaliação da Conformidade – ABRAC, que altera a Lei n° 12.846/ 2013 (Lei Anticorrupção) e que inclui entre seus mecanismos a obrigatoriedade do programa de integridade para empresas com contratos firmados com a Administração Pública Federal (a Lei atual traz os programas de integridade apenas como instrumentos voluntários), e sua respectiva certificação por Organismo de Certificação devidamente acreditado pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia – INMETRO, com base em Regulamento estabelecido pela Controladoria Geral da União – CGU.
Este Projeto de Lei constitui inovação importantíssima, pois amplia significativamente a adoção dos Programas de Integridade, aumentando sua influência de governança e cultural junto ao mercado e poder público, além de prever o instituto da certificação acreditada Inmetro, conferindo segurança técnica é jurídica ao poder público de que, de fato o Programa de Integridade está implementado e efetivo. Da mesma forma, o PL elimina qualquer caráter excludente ou de direcionamento na concorrência, pois a certificação do Programa de Integridade não é pré-requisito à licitação, mas deve ocorrer em até 12 após a assinatura do contrato.
A adoção de mecanismos eficazes e realmente independentes, assegurados por governança pública e boas práticas internacionais, como é o caso da certificação com a acreditação do INMETRO (por exemplo, aquelas baseadas nas normas ISO 37001 – Sistema de Gestão Antissuborno e ISO 37301 – Sistema de Gestão de Compliance) são instrumentos concretos no auxílio à prevenção da corrupção, e precisam ser observados com mais “carinho” e menos “relutância” pelos diversos atores, para que possamos sair da falácia da crença nos simples instrumentos jurídicos e “fé” nas instituições, para um ambiente mais competitivo, honesto, ágil e seguro, que de fato proteja os negócios em nosso país. Menos inocência, mais técnica.